A caixinha de som JBL tornou-se a essência do Brasil.
Quem nunca frequentou um espaço público onde dúzias de JBL’s competem entre si pelo direito de ocupar seus ouvidos a golpes de decibéis mortais de funk, pop ou sertanejo, atire a primeira pedra.
Para o dono da caixinha, o outro simplesmente não existe.
A lógica do dono da JBL é, se está bom para mim e meus parças, o resto que se exploda.
A degeneração da civilidade é de certa forma reflexo da degeneração das instituições e da coisa pública no país. Se os centros das cidades são sujos e inseguros, privatizamos o espaço público e condomínios e shoppings onde nos protegemos do rude grasnar da plebe. Se a polícia e a justiça não funcionam, espalhamos armas para o salve-se quem puder geral. Se as regras são muito caras e complicadas, burlamos as regras, migramos para a informalidade ou fazemos lobby para que as regras mudem. Cada um defende seu pedaço, seu setor, sua facção. Se está bom para mim e meu grupo… os outros que lutem.
Desnecessário dizer que o estado de cada um por si e Deus contra todos piora na mesma medida da desigualdade e da distância das pessoas das instituições públicas. Não é à toa que as periferias das cidades e as fronteiras agrícolas, onde o Estado é absolutamente ausente, é onde mais viceja a informalidade, a violência e esquemas de poder paralelo.
Os antigos romanos tinham boas ideias para organizar sua vida econômica e social. Dividiam o dia, reservando uma parte dele para o lazer, o ócio (otium), e outra parte para o trabalho, o negócio (negotium). A divisão moderna é entre os com burnout e os nem-nem. Mas isso é outra história.
Os romanos dividiam também o território entre urbis, a cidade, e ruris, a zona rural. E assim planejavam suas políticas.
Campo e cidade no Brasil enfrentam desafios homéricos, ambientais, sociais e econômicos. Lixo, saneamento, ocupações irregulares, especulação, assoreamento de rios, poluição, desastres, pobreza, violência.
A crise climática tende a só agravar todos esses problemas. As amostras que temos em dias recentes dão uma ideia do que vem por aí com frequência cada vez maior.
Cidades e o campo precisam de ações no curto prazo, mas também de estratégias e políticas de longo prazo.
Não estudo a questão urbana, mas para qualquer um é obvio que a ocupação desordenada, lixo e saneamento básico, mobilidade são questões importantes que as cidades brasileiras precisam enfrentar. Quantos municípios brasileiros tem capacidade de pensar e implementar políticas para estes desafios?
No mundo rural, o Brasil tem políticas ambiciosas como o plano ABC+ e o Codigo Florestal. Mas o campo também convive com desafios de ocupação desordenada, ineficiência, pobreza e obviamente o desmatamento. E de forma geral, se municípios pensam em planos diretores para sua parte urbana, poucos pensam em planejamento de sua paisagem rural.
Está claro que ninguém consegue resolver nenhum desses problemas sozinho.
Se não houver uma cooperação entre as diferentes instâncias federativas do poder público, mas também do setor privado e da sociedade civil, será muito difícil superar qualquer desafio. Em um mundo onde diferentes segmentos econômicos e sociais tendem a agir como donos de caixinhas da JBL, fica impossível. Não é só Don’t Look Up, é não olhe para cima e nem para os lados.
Faltam lideranças, é o que mais escuto.
Tenho a ligeira percepção de ter um conceito muito diferente de liderança do que o que vejo circulando por aí.
Um líder para mim seria alguém com capacidade de entender a complexidade dos desafios, os sinais do futuro, construir consensos e apontar uma direção.
A realidade me parece bem diferente. Li um artigo recente de Nelson Wilians que cita o livro “O Mito do Eleitor Racional”, do economista americano Bryan Douglas Caplan. Ele afirma que as pessoas acabam escolhendo como líderes, aqueles que compartilham os seus preconceitos. O que resulta em políticas ruins repetidas muitas vezes.
Da mesma forma, desconfio que os tais líderes acabam se cercando de assessores que estão lá somente para confirmar suas crenças, e não para realmente encontrar melhores soluções ou cooperar com outros segmentos.
O que me leva a algumas reflexões.
A primeira é a que dificilmente a mudança que precisamos virá da política. Pelas razões explicitadas por Caplan. Ou de forma menos sutil, como disse Churchill (citado por Wilians em seu artigo): a diferença entre os homens e animais, é que estes nunca colocariam o mais estúpido para conduzir a manada. Mas acredito, como diz José Luiz Tejon, que a política é que deverá vir a reboque da sociedade civil organizada.
A segunda é que não acredito que lideranças individuais conseguirão ser bem-sucedidas em um mundo que é cada vez mais complexo, instável, volátil e ambíguo (o mundo V.U.C.A. no famoso acrônimo em inglês). Mas acredito que redes formadas por pessoas com diferentes conhecimentos trabalhando nos mesmos temas poderão exercer essa liderança.
A terceira é que mais do que nunca mulheres terão um papel indispensável nas mudanças que precisamos que aconteçam. Principalmente porque não tem medo ou vergonha de aprender, e trabalham naturalmente em redes de apoio, muito mais do que homens.
Angela Merkel, o tipo de pessoa política ideal, que mede seu desempenho por performance e não por likes na internet, costumava antes de decisões importantes convocar equipes de especialistas para escutar todos, um a um. E a partir daí agir. Método que trouxe dos tempos de seus tempos de pesquisa científica.
Por último, a democracia continua sendo um sistema melhor do que todos os outros. E se queremos lideranças políticas melhores, é preciso combater na base as crenças irracionais que levam pessoas a escolher políticos ruins. A educação, continua sendo o maior gargalo do Brasil.
Fernando Sampaio – Diretor Executivo na Estratégia Produzir, Conservar, Incluir – Mato Grosso